[Today’s newsletter will be only in Portuguese. I’m sorry about that; I’m hoping to go back to writing in English soon.]
Estou em Lisboa há três dias e já fui três vezes ao cinema.
A partir do momento em que ganhei alguma autonomia sobre a minha pessoa (ou seja, quando deixei de depender dos meus pais para tudo), ir ao cinema passou a ser parte integral da minha vida. Comecei por ir depois do liceu, normalmente com a minha amiga Mafalda (lembro-me especificamente de, com 16 anos, termos pedido para sair mais cedo de uma aula de História para ir ver um filme ao Cinema Londres — claro que demos outra desculpa à professora), mas desde cedo descobri o enorme prazer que é ir ao cinema sozinha. Durante muitos anos tive a sorte de viver numa zona onde podia ir a pé a uma série de salas de cinema: Monumental, Nimas, King, Londres… e a Cinemateca estava à distância de uma curta viagem de metro. A certa altura apareceu o King Kard, que, por 15 euros por mês, dava acesso ilimitado ao cinema, e entrei numa época áurea em que via filmes duas ou três vezes por semana.
Durante o meu Erasmus em Paris frequentei as salas do Quartier Latin, onde havia reposições constantes dos filmes da Nouvelle Vague; lembro-me também de outras salas onde vi o segundo Kill Bill, o terceiro Harry Potter e tantos outros. Quando fomos viver para Inglaterra, a oferta era muito menor (vivíamos num sítio onde só havia um cinema de blockbusters) e ia menos, mas quando nos mudámos para Feilding, na Nova Zelândia, descobri um café-cinema que praticamente só passava filmes europeus, e digo-vos que as idas esporádicas a esse cinema foram a minha luz numa época bastante complicada (isolamento profundo, depressão pós-parto, enfim).
Agora vivemos em Espanha e não consigo ir ao cinema. Ainda não fiz as pazes com este facto e, antes de pensarem que sou uma exagerada, deixem-me dizer só isto: os filmes são todos dobrados. Os espanhóis não percebem a minha total incapacidade (recusa) para ver versões dobradas, porque para eles isso é o normal, mas uma pessoa que sempre viu filmes com legendas simplesmente não consegue ouvir aquelas vozes artificiais e desfasadas. Não é parvoeira minha, é a realidade. É verdade que, uma vez por semana, às sete da tarde, uma das salas de cinema faz o especial favor de passar um filme com legendas, mas essa hora é absolutamente impossível para mim e, para além disso, nem todos os filmes me interessam. Em Abril passei dois dias em Madrid com uma amiga (novamente a Mafalda) e podem crer que fomos ver dois filmes com legendas. E agora perceberão porque é que, sempre que venho a Lisboa, tiro a barriga de misérias.
Ontem cheguei a casa à meia-noite, vinda do Corte Inglês, onde tinha ido ver “O Sabor da Vida” (“La Passion de Dodin Bouffant”), e, tendo sido acordada hoje às seis da manhã por uma criança que teve um pesadelo, senti vontade de me levantar da cama e vir escrever esta newsletter, que está abandonada há tanto tempo (a razão para esse abandono será tema para uma newsletter futura). Um disclaimer: apesar de tudo o que acabei de escrever, não me considero uma cinéfila. Mais do que gostar de cinema, eu gosto de ir ao cinema. Sou bastante selectiva nos filmes que vejo, não gosto do típico blockbuster americanão, mas também fujo da violência e de filmes demasiado conceptuais. Aquilo que busco no cinema é sobretudo a beleza e a evasão. Duas horas de imersão absoluta noutro mundo, sem a mínima interrupção, em que posso desfrutar plenamente de uma experiência visual e intelectual. Uma janela de oportunidade para distanciar-me do dia-a-dia e poder pensar. Quanto a mim, a experiência de ver um filme numa sala de cinema não tem nada a ver com um filme visto em casa.
O filme de ontem encheu-me as medidas. É bonito, é refinado, é lento no bom sentido — talvez deva escrever pausado em vez de lento —, os interiores são sublimes, os exteriores são de sonho, os actores são excelentes, a representação é correcta (se bem que, por vezes, me tenha parecido algo teatral), as personagens são inteligentes e carismáticas, a relação principal é de amor e de profundo respeito… Tenho noção de que a beleza (a Beleza) passou de moda e deixou de ser um valor absoluto há muitas décadas, mas a mim é o que me continua a alimentar nesta vida. Um filme realmente belo, para ser saboreado com calma, mas que consegue ao mesmo tempo ser despretensioso e ter aquilo a que os ingleses chamam “lightness of touch”. É atmosférico sem cair no óbvio, pormenorizado sem entrar numa minucia cansativa. Requintado sem ser presunçoso. Muito ancorado num espaço (tudo grita França a plenos pulmões), mas — e apesar de ser um filme de época — pareceu-me um filme intemporal. Poderia ter sido feito há quinze, ou trinta, ou cinquenta anos. Com isto quero dizer que não é um filme que grite “fui lançado em 2023”. Começo a estar cansada de filmes de época com temáticas completamente anacrónicas em nome do politicamente correcto.
Mais até do que a extraordinária preparação dos pratos (que são o" “tour de force” do filme), ficaram-me gravadas as mesas, a porcelana na casa-de-jantar e a faiança na cozinha, as cortinas do quarto da Eugénie, os ramos de flores na cozinha, a bateria de cozinha de cobre, as hortas, a luz… há planos que parecem autênticos quadros.
Tenho-me apercebido de que as críticas a este filme foram absolutamente bipolarizadas: uns consideraram-no magnífico, outros ridículo (“demasiado bonito, demasiado plano”). Podem ouvir três minutos sobre esta dicotomia aqui.
Estou a pensar ir vê-lo outra vez.
Bom verão, até à próxima,
Constança
Concordo plenamente com tudo! Cinema dobrado, seja em que língua for é horrível. Filmes e séries de época em ambiente woke são insuportáveis. E a beleza, o sentido estético, o bom gosto...começa a ser algo em vias de extinção. Obrigada pela partilha e um bom regresso, seja com que frequência for, faz-me falta "ler-te".
Sabe sempre tão bem ler-te. Por momentos levaste-me para longe da cadeira de aeroporto onde estou sentada :) obrigada *